PASQUALE CIPRO NETO
'Sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?'
Será difícil entender o valor do emprego de certas formas linguísticas na poesia de vanguardistas, visionários?
DEVO DEDICAR algumas boas horas das próximas semanas à leitura de "Fernando Pessoa: Uma (Quase) Biografia", obra do advogado e escritor José Paulo Cavalcanti Filho, membro da recém-empossada Comissão da Verdade.
Para preparar o espírito (e a alma), releio alguns dos tantos poemas de Pessoa que me marcaram, vida afora e adentro. Um deles é o memorável "Poema em Linha Reta" (do heterônimo Álvaro de Campos), que parece ter sido escrito no ano que vem, tal a atualidade (e a intemporalidade) de seus versos. Assim começa o poema: "Nunca conheci quem tivesse levado porrada / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo". Qualquer semelhança com os heróis de plástico dos dias de hoje, os metrossexuais, os executivos de toda sorte, os workaholics, as deprimentes figuras que dizem aos quatro ventos que nada é problema, que são felizes etc. (mas dão patadas em Deus e todo o mundo, gritam até com as pessoas mais próximas, cospem fogo pelas ventas, desesperam-se, explodem de dor de cabeça, de estômago etc.) e com sabe Deus mais quem não é mera coincidência.
Pois bem. Vejamos alguns dos versos seguintes do poema de Pessoa: "E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, / Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, / Indesculpavelmente sujo (...) Toda a gente que eu conheço e que fala comigo / Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho / Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida... / (...) Arre, estou farto de semideuses! / Onde é que há gente no mundo?".
O verso seguinte é este (parte dele está no título desta coluna): "Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?". Pois era aí que eu queria chegar. Vá pensando na flexão "é" (do presente do indicativo do verbo "ser") empregada por Pessoa no trecho "...sou só eu que é vil...". A julgar pelo que se lê nas gramáticas...
Bem, antes que nos metamos a conversar sobre o caso, lembro uma pergunta que me fizeram numa das muitas feiras do livro de que participei Brasil afora. Um rapaz pediu a palavra e citou uma questão de um concurso público de que ele acabara de participar. Perguntava-se simplesmente qual o erro presente no célebre verso "No meio do caminho tinha uma pedra", que abre o antológico poema "No meio do caminho", de Carlos Drummond de Andrade. Incrédulo, investiguei e constatei que de fato a tal infame pergunta tinha mesmo sido feita aos pobres candidatos. Na "visão" do "examinador", há "erro" no emprego do verbo "ter". Santo Deus! Será difícil entender o valor do emprego de certas formas linguísticas na poesia de vanguardistas, visionários? Será difícil tratar isso com mais sensibilidade, pertinência, inteligência, abrangência?
Pois o verso de Pessoa pode prestar-se a esse tipo de patacoada. Alguém pode perguntar qual é o "erro" e esperar como resposta a forma verbal "é", que "deveria" ser substituída por "sou" ("Então sou só eu que sou vil e errôneo nesta terra?"). Pobre Pessoa! Pobres poetas! Pobres candidatos! O uso de "é" no poema tem relação direta com a essência da mensagem de Álvaro de Campos. Ao empregar "é" (e não "sou"), o poeta confirma que ele não "É" o único vil e errôneo, ou seja, escancara a hipocrisia alheia e se torna mais verdadeiro e menos vil, ao assumir plenamente a sua verdade, que é a verdade da miséria humana. É isso.